Cursos comunitários abrem as portas das universidades para jovens carentes

Daniel de Oliveira Lima nasceu e viveu toda a sua vida em uma comunidade de Sulacap. Determinado a entrar na universidade, encarou o desafio de estudar por conta própria as matérias do vestibular. Passou para a UERJ e, em 2008, formou-se em matemática.

Esta teria sido mais uma história de motivação e superação, não fosse um pequeno detalhe: Daniel não queria mudar apenas a sua história, ele queria mudar também a história e o destino de inúmeras crianças de comunidades carentes que sonham com a universidade, mas não têm base para aprovação nas disputadas provas de vestibular. Reuniu, então, dois amigos e iniciou um curso preparatório na laje de casa. “Ficamos lá por dois anos. Quando chovia, tínhamos que guardar rápido o quadro de giz, ficava tudo alagado; nos dias de calor, as crianças não conseguiam prestar atenção na aula porque era realmente muito quente. Dos dez primeiros alunos, dois conseguiram entrar na universidade”, lembra.

Enquanto Daniel sonhava com um mundo melhor do alto da sua laje, na PUC, o professor José Carmelo Braz de Carvalho dava continuidade a um trabalho que havia começado em 1993 com uma turma de alfabetização de adultos.

“Foi um processo gradativo. Começamos em 1998 com classes comunitárias para analfabetos adultos e em 2005 decidimos organizar cursos de formação sobre a matriz do ENEM, em apoio aos pré-comunitários. Antes do PROUNI, a universidade patrocinava mais de 700 bolsas e tinha um cadastro de vários cursos”, explica Carmelo.

A partir deste trabalho, iniciou-se uma discussão acadêmica voltada para a questão pedagógica dos cursos pré-vestibulares. O resultado foi a publicação de um livro, em 2005, chamado Espaço de mediações pedagógicas, mas havia ainda um longo caminho a ser trilhado.

Os pré-tecs

Três anos mais tarde, a PUC decidiu trabalhar também com cursos pré-técnicos comunitários. Carmelo diz como foi a experiência: “Muitos pensam que os prétécnicos não dão prestígio e vários alunos só procuram os cursos por insistência dos pais. Achamos importante mudar este pré-conceito. Preparamos os professores comunitários para lidar com esta situação. Incentivamos o desenvolvimento de projetos de política pedagógica e publicamos um livro com os trabalhos produzidos.

Iniciamos este curso no segundo semestre de 2009 com a aprovação da Vice-Reitoria Comunitária. Um tempo depois, surgiu a ideia de oferecer o curso a distância, sem custos. Foi, então, que a Coordenação Central de Educação a Distância entrou no projeto”.

Um dos frutos deste trabalho foi a publicação de mais dois livros sobre as classes comunitárias pré-técnicas.

Quando isto aconteceu, o cursinho de Daniel já não estava mais na laje. A Igreja Batista Betânia acreditou na ideia e incorporou o projeto como parte das atividades da congregação. Daniel lembra que nesta época, as aulas aconteciam numa sala dentro da igreja: “quando ia acontecer algum casamento, tinha passagem de som e mesmo assim, continuávamos estudando. Em 2007, éramos quinze professores dando aula de pré-vestibular. Neste ano, dos 35 alunos, cinco passaram. Hoje, a Igreja tem um espaço voltado exclusivamente para o trabalho social, é o CCAS, Centro de Cidadania e Atividades Sociais. No momento, funcionamos dentro desta instituição que não tem fins lucrativos e atende a comunidade carente nas áreas de saúde, educação, capacitação profissional, pessoal e emocional”.

Foco na pedagogia

Cândido Rafael Mendes conheceu e se apaixonou pelo projeto. Ao lado de Daniel, trabalhou para transformá-lo em algo bem maior: “Organizamos o primeiro curso comunitário preparatório para concurso do Rio de Janeiro. Em seguida, veio o curso pré-técnico. Hoje, são 70 voluntários, entre professores, administradores, pedagogos, psicólogos e profissionais do serviço social que tomam conta de cinco turmas”, explica.

A pastora e assistente social Davina Castro, responsável pelo CCAS, oferece todo o apoio para o grupo: “nossa prioridade é o ensino. Aqui é um espaço para servir a comunidade. Não é eclesiástico, é social, educativo”, diz.

A PUC entrou na vida desses jovens quando Daniel e Rafael fizeram o curso voltado para pré-vestibular em 2008 e participaram como alunos do curso pré-técnico em 2009. Rafael diz que se transformou em outro professor depois desta experiência. Cintia Costa, professora de biologia, também fez o curso e, para ela, foi muito importante: “é um curso de educação comunitária. Sentimos segurança e assim, passamos segurança aos nossos alunos. Sabemos que precisamos transmitir valores, mas também precisamos fazê-los passar. Trabalhamos para isso”, diz Cintia.

O professor Carmelo explica qual é a função do curso oferecido pela PUC: “sabemos que as classes comunitárias não podem trabalhar como as escolas regulares, aliás, este é o bordão dos professores dos pré-técnicos comunitários. Por isso, nosso curso foi desenvolvido para ensinar a trabalhar pedagogicamente com estes adolescentes carentes”.

Rafael dá um exemplo de como isso funciona na prática. Exibe, orgulhoso, o material doado por um curso pré-técnico e ressalta, “usamos estas apostilas, que aliás são excelentes, mas com a nossa didática”.

Em 2010, Nilton Junior, que também fez o curso da PUC e trabalha como voluntário ao lado de Daniel e Rafael, propôs que fosse organizado um novo curso, voltado para os alunos do Ensino Médio. Ele explica de onde surgiu a ideia: “Sugeri trabalhar com os alunos desde o primeiro ano porque o ensino seria defasado se fosse só dado no 3º ano. Infelizmente, ainda não temos estrutura para acompanhar aqueles que desistem de terminar os cursos, mas ao trabalharmos com estes alunos desde o primeiro ano, somos capazes de mudar a mentalidade deles; com certeza, o índice de abandono será menor”.

Futuro promissor

Nilton aproveitou as disciplinas do curso da PUC para montar um curso de Ensino Médio. A preocupação não é apenas passar, mas fornecer uma base sólida para os estudantes e mais, discutir com eles a questão da educação.

Daniel, Rafael, Nilton, Cintia e todos os voluntários que estão empenhados em mudar a realidade de tantos jovens de comunidades carentes sabem que não podem, nem devem substituir o Estado. Como explica o professor Carmelo, “já que o governo não é capaz de garantir o direito de todos no que se refere à educação, então, as classes comunitárias correm atrás para suprir esta carência”.

A corrida é tão intensa que os voluntários do curso comunitário da Igreja Batista Betânia já têm missão, visão e valores bem definidos, como em qualquer grande empresa: “estamos lutando para construir uma ONG, o Instituto Bem”, explica Rafael. “E daqui a dez anos, queremos construir uma escola comunitária”, completa Daniel. Deste jeito, a corrida os levará longe. Da laje para o mundo.

O que são os pré-técnicos?

Igrejas, ONGs e associações de moradores de comunidades carentes oferecem cursos pré-vestibulares e pré-técnicos em prol da inclusão educativa e sócio-profissional de inúmeros adolescentes comunitários. Desde 2005, a PUC-Rio decidiu se unir a estas instituições. Como explica o professor José Carmelo Braz de Carvalho, “é muito importante que a universidade se conscientize do seu papel social”.

Carmelo explica que o estrangulamento nas trajetórias dos alunos pobres acontece ao final do ensino fundamental, entre os adolescentes de 13 e 14 anos: “existe uma perversa segregação quantitativa e, também, qualitativa. Os jovens concluem o ensino fundamental com domínio pleno do conteúdo apenas da 4ª série primária, ou seja, estão abortados da cidadania escolar fundamental. Lutamos justamente contra isso”.

A PUC-Rio criou o Núcleo de Apoio Pedagógico às Classes Comunitárias, o NAPC, um espaço de diálogos entre os saberes e as práticas dos educadores comunitários e os conhecimentos de seus parceiros na academia e nos sistemas de formação profissional.

A Coordenação Central de Educação a Distância participa deste trabalho oferecendo cursos de formação docente semipresenciais. Ciléia Fioroti do Amaral é responsável pela administração das turmas nos ambientes virtuais e explica qual é o principal objetivo destes cursos: “oferecemos uma fundamentação pedagógica em apoio ao trabalho dos educadores comunitários e incentivamos o desenvolvimento de materiais didáticos e procedimentos psicossociais”.

Existem cerca de dez cursos pré-técnicos trabalhando em parceria com a PUC-Rio e novas turmas são organizadas todos os anos.

“O cursinho comunitário foi fundamental para eu passar”.
João Viegas entrou na faculdade de comunicação da PUC-Rio em 2011, após cursar o pré-vestibular da Igreja Batista Betânia. Ele conta como foi a experiência de participar de um curso comunitário.

“Sempre soube que iria entrar na universidade, esta era a minha vontade porque acreditava, e ainda acredito, que um curso superior é essencial para a minha vida profissional. Não se aprende apenas o que é ensinado na sala de aula, mas também com as pessoas, sem contar que aqui é possível criar um network que irá me ajudar bastante no futuro. Fiz o Ensino Médio técnico e me interessei pela área de comunicação. Decidi que faria vestibular para esta área. No final de 2009, entrei na turma de pré-vestibular da Igreja Batista Betânia, mas estudei pouco e não passei no vestibular. Em 2010, estudei para valer, me dediquei. O cursinho comunitário foi fundamental para eu passar. Lá, não são apenas as aulas que têm importância. O incentivo que é dado aos alunos para estudar também é essencial. Além disso, eles valorizam muito o aprendizado de fora da sala de aula, nos ensinam que é preciso ler revistas, jornais, ficar atento ao mundo ao nosso redor. Há uma preocupação com o lado cultural, os professores nos lembram que é importante ter uma base cultural, não apenas para passar no vestibular, mas para a vida. Tenho muita vontade de voltar no cursinho comunitário para ajudar outras pessoas. Eles me ajudaram e quero retribuir, afinal, entrar na faculdade, foi um passo grande para mim e sei que será para outras pessoas”.